A política da fome no Brasil



“No Frigorífico, eles não põem mais lixo na rua por causa das mulheres que catavam carne podre para comer”. Essa frase está no livro Quarto de Despejo um compilado dos diários escritos por Carolina Maria de Jesus – mulher, negra, favelada e mãe solteira – que migrou de Minas Gerais para a capital paulista. Ela morava na antiga favela do Canindé. Dali, com simplicidade, mas profundidade e dureza, relatou para o mundo o drama da fome. Seu livro foi traduzido para mais de 13 idiomas e publicado pela primeira vez em 1960.

Mais de 60 anos depois, a fome volta com força a assombrar o cotidiano de milhares de brasileiros que, como Carolina, levantam sem saber se irão comer. O frigorífico volta a ser notícia, agora, por meio da imprensa, que mostra a fila de brasileiros esperando pela distribuição gratuita de ossos

O País voltou ao Mapa da Fome em 2018. Pesquisa feita Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e amplamente divulgada mostra que apenas 4 entre 10 famílias têm acesso pleno à alimentação. Pelo menos, 33 milhões de brasileiros não têm o que comer. 

A maioria dos lares que sofre sem comida é comandado por mulheres.

A manutenção da fome no Brasil obedece a uma lógica econômica perversa que se perpetua desde a chegada dos portugueses nessas terras: a lógica da expropriação e do lucro a qualquer custo. 

Aqui, nunca se implementou uma política efetiva de reforma agrária. Desde a doação das sesmarias pelo reino português a seus aliados, a ocupação do território brasileiro é marcada pela concentração de grandes extensões de terra nas mãos de poucos proprietários. Se antes eram as sesmarias, hoje são os latifúndios. 

Estudo feito pelo Instituto de Desenvolvimento Agrário do Ceará e publicado em maio de 2020 confirma essa realidade: a distribuição de terras no Brasil é a mais desigual do mundo. O mapa revela que 25% de toda a terra agrícola do Brasil é ocupada pelos 15.686 maiores imóveis do País – 0,3% do total de imóveis. A situação é pior onde há grande produção de commodities, ou seja, nas áreas de atuação do agronegócio. 

A luta pela terra e pela ocupação igualitária do território no campo e na cidade continua e faz com que milhares de ativistas, indígenas e defensores dos direitos humanos tombem, sem vida. O caso mais recente foram os assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Ferreira, que juntos denunciavam a invasão de terras indígenas na Amazônia.

Se à época da colonização portuguesa prevalecia a monocultura para exportação, hoje prevalece a estratégia do agronegócio, que avança sobre as terras no Brasil para plantar soja e criar gado à custa de isenções tributárias e redução sistemática do investimento na agricultura familiar, impulsionada principalmente pela política do governo Bolsonaro. 

O Atlas Geografia e Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia feita pela geógrafa, mestre e doutora Larissa Bombardi aponta que mais da metade dos agrotóxicos no Brasil é utilizada em plantações de soja e o cultivo desse alimento ocupa território equivalente a 11 Bélgicas. Em contrapartida, as áreas destinadas ao plantio de arroz, feijão, trigo e mandioca vem diminuindo drasticamente. No caso do arroz e do feijão, a redução equivale a 40%. Os dados revelam a prevalência dos interesses comerciais e de exportação sobre a necessidade dos brasileiros, além de impacto sobre o preço da cesta básica.  

O patrimonialismo, já identificado brilhantemente pelo escritor Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, ou seja, a apropriação do Estado por interesses de oligarquias continua a ditar as regras da política no Brasil, nos mais diversos níveis, impedindo os avanços de políticas públicas de rompimento das estruturas que geram desigualdade e fome.

Uma delas, podemos exemplificar, é a resistência à implementação de uma reforma tributária que imponha taxação às grandes fortunas ou crie impostos sobre dividendos. Por que isso não interessa? Porque o Estado foi cooptado pelo mercado, pela ideia do acúmulo de capital e do investimento do dinheiro público para gerar superávit e atender única e exclusivamente à demanda por responsabilidade fiscal em detrimento da aplicação dos recursos em políticas de distribuição de renda. O dinheiro acumulado é direcionado para ações que vão beneficiar grupos de empresários que tem influência ou financiam políticos de forma que o dinheiro gira sempre nas mesmas mãos. É um círculo vicioso sustentado pela miséria.

E a fila pela comida só aumenta. Há milhões aguardando vaga no programa Auxílio Brasil – que oferece R$ 400 por mês a famílias em situação de vulnerabilidade – enquanto deputados federais fazem a festa do Orçamento secreto. É dinheiro público sendo enviado para bases eleitorais, para financiamento de shows de aliados e de administrações públicas comandadas por parentes e familiares. Vejam: o patrimonialismo persiste, agora, em versão atualizada.

Quem tem fome, tem pressa, é claro. E antes de qualquer coisa é fundamental que os governos implementem ações emergenciais de socorro às famílias em situação de insegurança alimentar. O Bolsa Família conseguiu retirar milhões da miséria e deveria ter avançado para a construção de uma renda mínima para os brasileiros. 

Mas já vimos que não basta ter uma política de transferência de renda. Esse é só o começo. O fim da fome no Brasil passa pela coragem de enfrentar as elites agrárias e econômicas que insistem em manter o País numa condição de colônia do capitalismo central à custa do empobrecimento da população.

E quem precisa de uma população faminta? Quem precisa se manter no poder à custa de fazer favores, distribuir cesta básica ou oferecer empregos sem garantir direitos mínimos aos trabalhadores.

O Brasil da fome é o país da injustiça. O Brasil da fome é o país de quem não tem escrúpulo e nem vergonha de desviar dinheiro da merenda e da educação.

É esse Brasil que precisa ser combatido se quisermos acabar definitivamente com o drama da fome. 




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