Comunicação Governamental, Relações de Poder e Cidadania


*COMUNICAÇÃO GOVERNAMENTAL, RELAÇÕES DE PODER E CIDADANIA

Silmara Helena Pereira de Paula

 

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar a comunicação de Estado sob a perspectiva da comunicação pública e explicitar alguns dos desafios impostos às instituições governamentais para a construção de uma relação mais dialógica e democrática com a sociedade. Considerando os estudos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, o texto retoma o debate em torno dos conceitos de comunicação governamental, pública e política e suas interfaces com o cidadão e os estudos sobre deliberação, democracia e representatividade. Para tanto, se utiliza da teoria crítica proposta por Robert Craig analisando as distorções e desigualdades do processo comunicativo estabelecido entre o cidadão e o Estado.

Abstract

The objective of this article is to analyze State’s communication from the perspective of public communication and to explain some of the challenges imposed on government institutions to build a more dialogic and democratic relationship with society. Considering the studies of brazilian an foreign researchers, the text resumes the debate around the concepts of governamental, public and political communication and their interfaces with de citizen and studies on deliberation, democracy and representation. Fot that, it uses de critical theory proposed by Robert Craig, analyzing the distortions and inequalities of the communicative process established between the citizen and the State.

Palavras-chave: Comunicação pública; comunicação governamental; comunicação política; patrimonialismo; democracia; representatividade.

Introdução

Há desafios postos à comunicação governamental na atualidade que exigem uma definitiva mudança de postura e atuação diante da sociedade. Esses desafios envolvem o enfrentamento de uma conjuntura social complexa, de múltiplos atores, que tornam a comunicação estatal mais uma entre tantas vozes na esfera pública a chamar a atenção dos indivíduos[1].

O artigo parte do princípio de que há uma dificuldade de aproximação entre o Poder Público e o cidadão por meio da comunicação. E por quê? Para tentar responder a essa questão são sugeridas seis hipóteses que serão confrontadas com análises, estudos e teorias ao longo do texto.

São elas : a comunicação estatal no Brasil é historicamente reconhecida como instrumento de propaganda política; a delimitação das “fronteiras” entre comunicação pública, governamental e política ainda é nebulosa.; a  prática profissional está focada em uma cultura de transmissão de informação e não de diálogo com os públicos de interesse das organizações; o cidadão é tratado como receptor e não como sujeito da ação comunicativa do Estado; política é uma área de conflitos e disputas de interesse que afetam a comunicação estatal e há  uma crise de representatividade na democracia liberal que afeta a credibilidade das instituições e de seus representantes.

Começamos a destrinchar esses assuntos, a partir de uma ampla pesquisa bibliográfica que recupera os estudos sobre comunicação pública, governamental e política de pesquisadores brasileiros e estrangeiros entre os quais Pierre Zémor, Heloíza Matos, Jorge Duarte, Elizabeth Brandão, Maria José de Oliveira e Marina Koçouski. Ela consta da primeira parte do artigo, intitulada: Afinal, de que comunicação estamos falando?

Na segunda parte, o texto discute quem é o cidadão na comunicação pública e como o patrimonialismo e as desigualdades sociais, econômicas e cognitivas enfrentadas pelos indivíduos na esfera pública afetam as condições de participação nos espaços de debate e deliberação. Neste contexto, retoma o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda e traz as análises de William Gamson como contraponto a ideia de que o indivíduo é incapaz de entender e interpretar a realidade. Além disso, indica na perspectiva dos estudos de Ivone Oliveira e Maria Paula a insuficiência do modelo informacional de comunicação praticado pelas organizações.

Ao final escrutina a abordagem feita por autores como Luiz Martins da Silva,  Luís Felipe Miguel, Jacques Gerstlé, Chantal Mouffe e Rousiley Maia sobre transparência, relações de poder e representatividade no sistema democrático.  

Afinal de que comunicação estamos falando?

            A Constituição Federal de 1988 garantiu aos cidadãos o direito à informação e determinou ao Estado a obrigação de dar transparência a seus atos[2]. Definiu em seu artigo 37 os princípios inerentes à administração pública, entre os quais, o da publicidade e o da impessoalidade.

Assim, a comunicação governamental, antes associada exclusivamente à propaganda ou ao marketing político, e até a um certo personalismo, foi obrigada a reposicionar-se. “Diante do novo cenário político do País, a comunicação de origem governamental também sofreu transformações e buscou a adoção do sentido de comunicação pública, ou seja, aquela com o objetivo de informar o cidadão” (BRANDÃO, 2009, p. 10).

Apesar de constatar essas mudanças de posicionamento, principalmente, na atuação dos profissionais de comunicação do setor público, é a própria professora Elizabeth Brandão que reconhece as implicações na origem da comunicação estatal em nosso País, ou seja, historicamente, uma comunicação marcada por uma prática de viés de propaganda política e de veiculação de publicidade através da grande mídia. (BRANDÃO, 2009). A afirmação coaduna com a primeira hipótese apontada no artigo sobre um dos desafios da comunicação estatal.

 Em tese de 1989, na qual analisa a comunicação no período do governo do presidente Médici, a professora e doutora Heloíza Matos já demonstrava como a comunicação governamental e a comunicação política se misturaram e serviram como instrumento de sustentação do regime, “por meio de estratégias bem pensadas de marketing e de propaganda”.

Matos (1989, Introdução) aponta para um conceito de comunicação política “entendida, de forma ampla, como o conjunto de manifestações de poder e influência que caracterizam as relações entre Estado, sociedade civil e os meios de comunicação”. 

A partir dessas reflexões a autora indica algumas das características da comunicação política, tendo o cuidado de evitar generalizações. Ela afirma:

[...] as interações entre Estado e Sociedade, mediadas por relações interpessoais, institucionais ou meios de comunicação social, serão comunicações políticas quando influírem na direção e sentido das decisões que contribuem para a estabilização, desequilíbrio ou mudanças no sistema político”. [...] mas “um canal de televisão estatal não é, permanentemente um veículo de comunicação política.(MATOS, 1989, pg.17).

 

Para Bucci (2009), no entanto, a confusão entre comunicação estatal e comunicação política, prossegue. Ele classifica essa simbiose, revelada por Matos, como uma “tradição perversa” que ainda permanece muito presente nas instituições. Ele salienta: “[...] instituições públicas que operam a comunicação social [...] vêm atuando como pequenas máquinas de propaganda a serviço das autoridades do Poder Executivo”.  (BUCCI, 2009, p.192)

E como diferenciar a comunicação de Estado da propaganda política?

Para Monteiro (2009, p. 38), a comunicação governamental “é aquela praticada pelo governo, visando a prestação de contas, o estímulo ao engajamento da população nas políticas adotadas e ao reconhecimento das ações promovidas nos campos político, econômico e social”. Nesta condição, a comunicação avança para uma relação mais democrática com a sociedade e o cidadão, “sendo entendida como comunicação pública”. (BRANDÃO, 2009, p.5)

Miola e Marques (2017) apontam o que chamam de “inconsistências” no conceito de comunicação pública, entretanto, reconhecem a importância estratégica da comunicação estatal e o seu potencial de fortalecimento do processo democrático. Os autores tratam da comunicação de Estado em duas dimensões – a democrática-normativa, que envolve prestação de contas, transparência e estímulo à participação e a estratégica, considerada como comunicação institucional direcionada à construção da imagem da organização.

Ainda que a comunicação pública não seja um conceito (Brandão apud Kucinski, 2009, p.xii) ou um é “conceito em construção” (Monteiro apud Kucinski, 2009, p.xii) é possível, na avaliação de Brandão (2009), apreender  um consenso entre os estudiosos sobre o  tema: “comunicação pública não é comunicação governamental e diz respeito ao Estado e não ao governo”. (BRANDÃO, 2009, p. 15)

            A comunicação pública se trata então de “um processo comunicativo que se instaura entre o Estado, o governo e a sociedade com o objetivo de informar para a construção da cidadania” (Brandão, 2009, p.9). Matos (2003 apud Monteiro, 2009, p. 37) segue a mesma linha: “é um processo de comunicação instaurado na esfera pública que engloba o Estado, o Governo e a Sociedade, um espaço de debate, negociação e tomada de decisões relativas à vida pública do País”. Oliveira (2012) avança e afirma existir uma interface entre comunicação organizacional e comunicação pública à medida que aquela se aproxima do interesse público, do exercício democrático e da cidadania.

Em sua Carta Deontológica da Comunicação Pública Pierre Zémor afirma que:

A comunicação pública inclui toda a comunicação efetuada por agentes que trabalham em instituições públicas, empresas ou estabelecimentos com missão de interesse público, ou ainda por qualquer outra pessoa que cumpra especificações emitidas por uma instituição pública. (ZÉMOR, 2008, apud KOÇOUSKI, 2012, p. 77).

 

Para Barros e Bernardes (2011), porém, há uma incompatibilidade entre comunicação governamental e comunicação pública. Eles apontam três características que reforçam o argumento: o foco excessivo na transmissão de informação; o caráter ideológico e o patrimonialismo persistente na estrutura do Estado brasileiro. O modelo informacional e o patrimonialismo são hipóteses também aventadas nessa reflexão como obstáculos à prática de uma comunicação mais democrática. Ambos os assuntos serão abordados em tópicos posteriores com a inclusão de outros elementos.

Os dois autores minimizam as críticas em relação à comunicação feita pelo Poder Legislativo, mas ainda tratam a ideia de transformar a comunicação estatal em comunicação pública como “estratégia” que serve apenas para “legitimar a atividade por um Estado que não quer ser confundido com aquele que existiu em outras épocas no país, notadamente, na época da ditadura militar”. (BARROS e BERNARDES, 2011, p.13).

Informação versus diálogo

Se a aproximação entre comunicação estatal e comunicação política, como podemos apreender, distorce os princípios (ou o que deveriam ser) da comunicação estatal aproximando-a de uma atuação voltada ao convencimento do público, por meio da propaganda, e da preocupação excessiva com a transmissão de informação através dos meios de comunicação, prioritariamente, a adoção do diálogo como princípio parece aproximá-la da comunicação pública. 

Oliveira e Paula (2008) em estudo sobre a comunicação nas organizações apontam para a insuficiência da cultura informacional como estratégia para alcançar o cidadão. As pesquisadoras sugerem a superação do paradigma clássico/informacional e a adoção do que chamam de modelo de interação comunicacional dialógica. Nesse modelo, a organização “integra a sociedade e é um dos seus atores” e, portanto, precisa “interagir com eles”.

Duarte (2009) faz uma distinção objetiva entre diálogo e informação. O autor afirma que a informação “é base primária do conhecimento”, mas não pode (e nem deve) incorporar o todo da comunicação. “Informação é elemento básico e essencial da comunicação, mas não o único”.(DUARTE, 2009, p. 62).

DUARTE, M. (2009) sugere a aplicação do modelo educativo de Paulo Freire no processo de comunicação pública como forma de possibilitar a autonomia do cidadão:

Comunicação é a coparticipação dos sujeitos no ato de pensar [...] [ela] implica em uma reciprocidade que não pode ser rompida [...] comunicação é diálogo na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. Paulo Freire (1971 apud Duarte, 2009, p.98).

 

Afinal, “você sabe com quem está falando”?

Essa pergunta talvez seja a representação mais característica das relações que se estabelece no Brasil, inclusive, no âmbito do Estado. Sérgio Buarque de Holanda (1936; 1947; 1955 [1995] ) afirma que esse tipo de comportamento que supervaloriza as relações pessoais em detrimento das leis e da organização social é típica da formação do Estado brasileiro, marcada pelo patrimonialismo.

Para Holanda (1995) a impessoalidade nunca foi um traço do comportamento dos brasileiros e os limites entre a família e o Estado ou entre o que é público e particular nunca ficaram muito claros.

O patrimonialismo na visão de Barros e Bernardes (2011) é uma condição impeditiva para aproximação da comunicação estatal da comunicação pública e os dois ainda reforçam com mais ênfase essa visão agregando à atuação estatal uma prática com características personalistas e autoritárias. Quer dizer, a comunicação finge ser pública, se disfarça de comunicação democrática e faz acreditar que defende interesses de fato públicos. [...] decisões são tomadas “em nome do povo”, “pelo povo” [...] mas “trata-se de projetos que passam a compor a burocracia da administração pública [...] de cunho assistencialista, paternalista e, muitas vezes, populistas e autoritários.” (BARROS e BERNARDES, 2011, p. 13-14). O cidadão torna-se “público-alvo” e não sujeito do processo comunicativo. Nessa condição, a comunicação estatal se coloca no papel de “emissor” e o cidadão de “receptor” da mensagem, repetindo o modelo de Lasswell, e se afastando da possibilidade de uma comunicação mais interativa[3].

Duarte (2009) faz um excelente contraponto ao definir o que pode ser considerado comunicação pública:

Comunicação pública coloca a centralidade do processo de comunicação no cidadão, não apenas por meio da garantia do direito à informação e à expressão, mas também do diálogo, do respeito a suas características e necessidades, do estímulo à participação ativa, racional e corresponsável. (DUARTE, 2009, p. 61).

 

Mas quem é esse cidadão? Com quem estamos falando, afinal?

Para Monteiro (2009, p.41) “na comunicação pública o receptor é a um só tempo: cliente, consumidor, contribuinte, eleitor, em suma: cidadão”. Para Matos  (2009, p. 52), “a comunicação pública exige a participação da sociedade e de seus segmentos. Não apenas como receptores da comunicação do governo e de seus poderes mas também como produtores ativos do processo”.

No entanto, o cidadão vive em uma sociedade complexa e desigual cuja participação nos espaços de decisão e deliberação está associada a sua condição social, econômica e cognitiva, cuja “existência física não é o bastante para garantir a existência midiática”. (DUARTE M., 2009, p. 105).

Para Oliveira e Paula  (2008, pág 10), as infindáveis possibilidades de interação e comunicação aumentaram as exigências dos cidadãos em relação às instituições e organizações e também os questionamentos sobre a representatividade no sistema democrático, apontamento que corrobora com a hipótese lançada sobre as relações do cidadão com a democracia na atualidade.  

Para Zémor (1995, p.3 ) a relação entre cidadão e Estado não é simples. Diz ele: “[...] Na verdade, é a característica ativa do receptor que estabelece a comunicação. A passividade pressupõe um distanciamento ou uma fascinação frente à autoridade do emissor público”.

Para que a ideia do cidadão-receptor seja superada, a comunicação estatal precisa assumir um papel efetivo no processo de democratização da informação, de educação e de aumento do capital comunicacional dos indivíduos, a partir do reconhecimento das desigualdades que impedem o acesso igualitário aos meios e às formas de informação e comunicação. “[...] seu objetivo [da comunicação pública] além de informar, é qualificar o cidadão para exercer seu poder de voz, de voto e de veto nas questões que dizem respeito à coletividade.” (MONTEIRO, 2009, p.40).

“O problema é que as pessoas que mais precisam de informação em geral são as que têm menos acesso aos mecanismos de transmissão e orientação ou possuem mais dificuldade de compreensão de seu significado” (DUARTE, 2009, p. 67).

Matos (2009, p. 53) aponta: “Um cidadão que não acredita ter direito a se expressar, que não valoriza o que tem a dizer e que se sente incapaz de comunicar isso adequadamente aos outros dificilmente terá condições de integrar a rede social de comunicação pública”.

As diferenças na compreensão dos indivíduos sobre a realidade e até mesmo sobre seu papel no processo comunicativo não deve supor que eles sejam incapazes de entender ou interpretar a realidade. William Gamson (2011) conta sobre suas observações ao reunir um grupo de cinco adultos negros americanos na cidade de Boston para uma discussão sobre temas políticos. O autor afirma: “as pessoas não são tão passivas; as pessoas não são tão estúpidas e as pessoas negociam com as mensagens da mídia de maneira complexa que varia de uma questão para outra”.

Gamson (2011) faz críticas a maneira como as ciências sociais abordam a questão do público assim como as instituições públicas que sempre conferem mais atenção “à incapacidade linguística e cognitiva dos trabalhadores.”.

            O fato é que os indivíduos na esfera pública assumem papeis diversos e também negociam e interpelam as instituições. É o que aponta o professor Marcos André Costa corroborando com a análise de Gamson ao definir o que chama de públicos de interesse das instituições em vez de público-alvo[4]. Ele foi um dos que colaborou na definição do conceito em momento no qual se discutia a política de comunicação da Petrobrás[5].

 

Afinal, de que democracia estamos falando?

A comunicação estatal se desenvolve e atua em relação direta com o mundo da política. E o mundo da política se estabelece a partir de conflitos e interesses que muitas vezes afetam o trabalho das assessorias de comunicação nos órgãos públicos.

            Episódios recentes demonstram como a influência de gestores de ocasião podem ser nefastas à atuação governamental. Após a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018 deu-se início a um ataque sem precedentes à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Além de episódios de censura, o governo ameaça privatizar a empresa.

            Em Carta de Conjuntura da Comunicação Pública, a Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABC Pública) resume a situação da comunicação governamental na atualidade: “O cenário da comunicação pública no primeiro semestre de 2021 permanece com ameaças e padrão de intolerância ao trabalho jornalístico, censura na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e dificuldades crescentes no acesso à informação”.

 No relatório do Direito à Comunicação no Brasil (2019), o Coletivo Intervozes escancara a intervenção autoritária do atual governo na EBC. Sob o título: Comunicação Pública perto do fim, a organização que tem como bandeira a democratização da comunicação no Brasil, afirma que a censura foi institucionalizada e a empresa tratada de forma patrimonialista pelo governo. Tanto que as palavras “golpe” e “ditadura” foram proibidas “a partir das repercussões de Bolsonaro de que os quarteis deveriam comemorar a data”.

            Do ponto de vista do cidadão, a ameaça de controle à comunicação pública governamental coloca em risco à transparência das informações do Estado.

É próprio da República a transparência. E essa é a razão para que um Estado democrático tenha de manter em suas rotinas a publicização de tudo o que é feito com o dinheiro público; de tudo o que é de interesse público e de tudo o que possa afetar o bem público e o patrimônio público”. (SILVA, 2009, p. 180).

 

            Maia (2008, p. 167) discute a questão da publicidade em dois sentidos: o fraco, quando apenas faz uma oposição ao segredo; e ao forte, quando “diz respeito às normas que regulam o diálogo e a negociação dos entendimentos em público (juízo público)”, mas salienta que a “visibilidade midiática” não significa aumento do potencial de deliberação. Isso nos aponta mais uma vez para a limitação do modelo de comunicação estatal que opta prioritariamente pela publicização de seus atos através da mídia, ignorando outras possibilidades de comunicação com o público, inclusive, aquelas que conduzem a maior interação entre o poder constituído e o cidadão. Tanto é que autora trabalha com a concepção de [6]“públicos fortes” e “públicos fracos”.

            Já Miguel (2014) trata a questão da representação no espaço democrático como um território em disputa. Para o autor o que está em jogo são os interesses, não as perspectivas.  Gerstlé (2005)  arremata: “Las desigualdades en el acesso al conocimiento, y le linguaje  es uma de las condiciones, se prolongan em desigualdades para la adquisición de competência política, es decir de la oportunidad de ejercer el poder”. 

Haswani cita Charaudeau (2012, p. 63) para mostrar como o discurso do Estado exerce poder sobre a sociedade. “Toda instância de poder, quer queira, quer não, exerce um poder de fato sobre o outro”. Mouffe aponta a necessidade de se rever a ideia de consenso (sem conflito) na democracia liberal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

           

O processo de democratização e o avanço das redes sociais, entre outros fatores, transformou o espaço público de debate e deliberação. As relações na esfera pública tornaram-se mais complexas e disputadas. Nesse contexto, a comunicação estatal não é a única e nem a principal voz. E o cidadão, ainda que de forma limitada, também conquistou a possibilidade de expressar-se.

A ampliação dos espaços de “fala”, porém, não significou maior capacidade de alguns indivíduos de influir no debate de temas de interesse públicos. As desigualdades continuam latentes e presentes na sociedade o que exige o aprofundamento das reflexões sobre representatividade – peça-chave do questionamento de parte dos cidadãos sobre a validade da democracia.

            A comunicação estatal não pode ignorar essa realidade.

Mais do que isso: ao observar a análise dos autores sobre o processo histórico que forjou a comunicação estatal no Brasil é possível afirmar que a consolidação de uma comunicação estatal mais próxima dos valores da comunicação pública é condição necessária para a consolidação da democracia.

As demais hipóteses formuladas como desafios à comunicação estatal ganharam respaldo nos estudos dos pesquisadores, ainda que careçam de aprofundamento.

Neste contexto, ouso estabelecer aqui algumas funções que considero, a partir das concepções propostas no artigo, como fundamentais para uma comunicação estatal que se proponha democrática e dialógica:

FUNÇÃO

IDEIA CENTRAL

OUVIR

Aprenda a escutar cuidadosamente. “As pessoas não são como lembra Giddens (1996 apud Gamson, 2011) “tolos culturais ou estruturais.”

INFORMAR

“[...] Necessidade de o Estado produzir permanentemente informações de natureza jornalística para a população, assegurando para a mesma as informações sobre os “fatos” do governo que por ventura não se tenha garantia de que a mídia tradicional se interessaria por eles”. ( SILVA, 2009, p. 181)

PUBLICIZAR

“[...] quanto mais democrática uma república, mais visível seria a coisa pública e menos opaco o poder dos governos e do Estado, podendo-se desse escalonamento lógico deduzir-se que há uma relação proporcional entre Democracia e Publicidade [...]”. (SILVA, 2009, p. 186)

DIALOGAR

“[...] Comunicação em seu significado mais pleno [...] se realiza plenamente na perspectiva interativa e dialógica, quando se oferece aos interlocutores a possibilidade de participar ativamente dos processos que os afetam.” (DUARTE, 2009, p. 63)

EMPODERAR

“[...] comunicação pública é política de inclusão informacional. [...] é política de democratização do saber. (MATOS, 2009, p.56).

 

Referências

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BARROS, Antônio Teixeira de; BERNARDES, Cristiane Brum. Comunicação pública e liberdade de informação: condições básicas para as mídias legislativas. Trabalho apresentado GT 1: Comunicação e Democracia no VI Encontro ComPolítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 13 a 15 de abril de 2011. Disponível em http://www.compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/03/Cristiane-Brum.pdf.

 

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[1]Segundo Heloíza Matos (2009) “esfera pública é um conjunto de espaços físicos e imateriais em que os agentes sociais podem efetivar sua participação no processo de comunicação pública”. (MATOS, Heloíza, Comunicação Pública, esfera pública e capital social. IN:Duarte, Jorge (org). Comunicação Pública: Estado, Mercado, Sociedade e Interesse Público. 1ª ed. 2ª reimp. São Paulo, Editora Atlas: 2009

[2] A Constituição Federal foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[3] Cientista político que desenvolveu um modelo de comunicação que estabelece, entre outros aspectos, a ideia do emissor e do receptor com papeis bem definidos no processo comunicativo, sem reciprocidade.

[4] O professor Marcos André Costa apresentou a definição de públicos de interesse durante a aula sobre Mensuração da Comunicação na área pública ministrada em 17 de julho de 2021 no Programa Avançado em Comunicação Pública coordenado pela Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e a Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABC Pública). Texto original: Petrobras study of publics: a step towards achieving the company’s strategic vision for 2020. Disponível em: https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/13563281111156862/full/html.

[5] PETROBRÁS. Definição de públicos de interesse. “Públicos de interesse são grupos de indivíduos e/ou organizações com questões e/ou necessidades comuns de caráter social, político, econômico, ambiental ou cultural que estabelecem ou podem estabelecer relações com a Petrobrás (ou qualquer outra organização) e são capazes de influenciar - ou ser influenciados por – atividades, negócios e/ ou a reputação da organização. A partir desse mapeamento, promovemos práticas contínuas de comunicação e relacionamento para cada um dos públicos”. Disponível em https://petrobras.com.br/pt/quem-somos/perfil/publicos-de-interesse/.

[6] Para autora, público forte diz respeito àqueles grupos representantes do centro do sistema político e às elites; e público fraco é o sujeito da opinião pública. (MAIA, 2008, p. 179)

*Artigo Científico produzido como trabalho final da disciplina Comunicação Pública e Política: Fundamentos para a Análise das Crises na Democracia Contemporânea integrada ao programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), cursada como aluna especial no périodo de março a a julho de 2021.Avaliação: A, excelente. 

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