Comunicação Governamental, Relações de Poder e Cidadania
*COMUNICAÇÃO
GOVERNAMENTAL, RELAÇÕES DE PODER E CIDADANIA
Silmara Helena Pereira de Paula
Resumo
O
objetivo deste artigo é analisar a comunicação de Estado sob a perspectiva da
comunicação pública e explicitar alguns dos desafios impostos às instituições
governamentais para a construção de uma relação mais dialógica e democrática
com a sociedade. Considerando os estudos de pesquisadores brasileiros e
estrangeiros, o texto retoma o debate em torno dos conceitos de comunicação
governamental, pública e política e suas interfaces com o cidadão e os estudos
sobre deliberação, democracia e representatividade. Para tanto, se utiliza da
teoria crítica proposta por Robert Craig analisando as distorções e
desigualdades do processo comunicativo estabelecido entre o cidadão e o Estado.
Abstract
The
objective of this article is to analyze State’s communication from the
perspective of public communication and to explain some of the challenges
imposed on government institutions to build a more dialogic and democratic
relationship with society. Considering the studies of brazilian an foreign
researchers, the text resumes the debate around the concepts of governamental,
public and political communication and their interfaces with de citizen and
studies on deliberation, democracy and representation. Fot that, it uses de
critical theory proposed by Robert Craig, analyzing the distortions and
inequalities of the communicative process established between the citizen and
the State.
Palavras-chave: Comunicação
pública; comunicação governamental; comunicação política; patrimonialismo; democracia;
representatividade.
Introdução
Há desafios postos à comunicação
governamental na atualidade que exigem uma definitiva mudança de postura e
atuação diante da sociedade. Esses desafios envolvem o enfrentamento de uma
conjuntura social complexa, de múltiplos atores, que tornam a comunicação estatal
mais uma entre tantas vozes na esfera pública a chamar a atenção dos indivíduos[1].
O artigo parte do princípio de que há uma
dificuldade de aproximação entre o Poder Público e o cidadão por meio da
comunicação. E por quê? Para tentar responder a essa questão são sugeridas seis
hipóteses que serão confrontadas com análises, estudos e teorias ao longo do
texto.
São elas : a comunicação estatal no
Brasil é historicamente reconhecida como instrumento de propaganda política; a
delimitação das “fronteiras” entre comunicação pública, governamental e
política ainda é nebulosa.;
a prática profissional está
focada em uma cultura de transmissão de informação e não de diálogo com os
públicos de interesse das organizações; o cidadão é tratado como receptor e não
como sujeito da ação comunicativa do Estado; política é uma área de conflitos e
disputas de interesse que afetam a comunicação estatal e há uma crise de representatividade na democracia
liberal que afeta a credibilidade das instituições e de seus representantes.
Começamos a destrinchar esses assuntos, a
partir de uma ampla pesquisa bibliográfica que recupera os estudos sobre comunicação
pública, governamental e política de pesquisadores brasileiros e estrangeiros
entre os quais Pierre Zémor, Heloíza Matos, Jorge Duarte, Elizabeth Brandão,
Maria José de Oliveira e Marina Koçouski. Ela consta da primeira parte do
artigo, intitulada: Afinal, de que comunicação estamos falando?
Na segunda parte, o texto discute quem é
o cidadão na comunicação pública e como o patrimonialismo e as desigualdades
sociais, econômicas e cognitivas enfrentadas pelos indivíduos na esfera pública
afetam as condições de participação nos espaços de debate e deliberação. Neste
contexto, retoma o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda e traz as análises de William
Gamson como contraponto a ideia de que o indivíduo é incapaz de entender e
interpretar a realidade. Além disso, indica na perspectiva dos estudos de Ivone
Oliveira e Maria Paula a insuficiência do modelo informacional de comunicação
praticado pelas organizações.
Ao final escrutina a abordagem feita por
autores como Luiz Martins da Silva, Luís
Felipe Miguel, Jacques Gerstlé, Chantal Mouffe e Rousiley Maia sobre
transparência, relações de poder e representatividade no sistema democrático.
Afinal de que comunicação estamos falando?
A
Constituição Federal de 1988 garantiu aos cidadãos o direito à informação e
determinou ao Estado a obrigação de dar transparência a seus atos[2].
Definiu em seu artigo 37 os princípios inerentes à administração pública, entre
os quais, o da publicidade e o da impessoalidade.
Assim,
a comunicação governamental, antes associada exclusivamente à propaganda ou ao
marketing político, e até a um certo personalismo, foi obrigada a
reposicionar-se. “Diante do novo cenário político do País, a comunicação de
origem governamental também sofreu transformações e buscou a adoção do sentido
de comunicação pública, ou seja, aquela com o objetivo de informar o cidadão”
(BRANDÃO, 2009, p. 10).
Apesar
de constatar essas mudanças de posicionamento, principalmente, na atuação dos
profissionais de comunicação do setor público, é a própria professora Elizabeth
Brandão que reconhece as implicações na origem da comunicação estatal em nosso
País, ou seja, historicamente, uma comunicação marcada por uma prática de viés
de propaganda política e de veiculação de publicidade através da grande mídia.
(BRANDÃO, 2009). A afirmação coaduna com a primeira hipótese apontada no artigo
sobre um dos desafios da comunicação estatal.
Em tese de 1989, na qual analisa a comunicação
no período do governo do presidente Médici, a professora e doutora Heloíza
Matos já demonstrava como a comunicação governamental e a comunicação política
se misturaram e serviram como instrumento de sustentação do regime, “por meio
de estratégias bem pensadas de marketing e de propaganda”.
Matos
(1989, Introdução) aponta para um conceito de comunicação política “entendida,
de forma ampla, como o conjunto de manifestações de poder e influência que
caracterizam as relações entre Estado, sociedade civil e os meios de
comunicação”.
A
partir dessas reflexões a autora indica algumas das características da
comunicação política, tendo o cuidado de evitar generalizações. Ela afirma:
[...]
as interações entre Estado e Sociedade, mediadas por relações interpessoais,
institucionais ou meios de comunicação social, serão comunicações políticas
quando influírem na direção e sentido das decisões que contribuem para a
estabilização, desequilíbrio ou mudanças no sistema político”. [...] mas “um
canal de televisão estatal não é, permanentemente um veículo de comunicação
política.(MATOS, 1989, pg.17).
Para
Bucci (2009), no entanto, a confusão entre comunicação estatal e comunicação
política, prossegue. Ele classifica essa simbiose, revelada por Matos, como uma
“tradição perversa” que ainda permanece muito presente nas instituições. Ele
salienta: “[...] instituições
públicas que operam a comunicação social [...] vêm atuando como pequenas
máquinas de propaganda a serviço das autoridades do Poder Executivo”. (BUCCI, 2009, p.192)
E
como diferenciar a comunicação de Estado da propaganda política?
Para
Monteiro (2009, p. 38), a comunicação governamental “é aquela praticada pelo
governo, visando a prestação de contas, o estímulo ao engajamento da população
nas políticas adotadas e ao reconhecimento das ações promovidas nos campos
político, econômico e social”. Nesta condição, a comunicação avança para uma
relação mais democrática com a sociedade e o cidadão, “sendo entendida como comunicação
pública”. (BRANDÃO, 2009, p.5)
Miola
e Marques (2017) apontam o que chamam de “inconsistências” no conceito de
comunicação pública, entretanto, reconhecem a importância estratégica da
comunicação estatal e o seu potencial de fortalecimento do processo
democrático. Os autores tratam da comunicação de Estado em duas dimensões – a
democrática-normativa, que envolve prestação de contas, transparência e
estímulo à participação e a estratégica, considerada como comunicação institucional
direcionada à construção da imagem da organização.
Ainda
que a comunicação pública não seja um conceito (Brandão apud Kucinski, 2009,
p.xii) ou um é “conceito em construção” (Monteiro apud Kucinski, 2009, p.xii) é
possível, na avaliação de Brandão (2009), apreender um consenso entre os estudiosos sobre o tema: “comunicação pública não é comunicação
governamental e diz respeito ao Estado e não ao governo”. (BRANDÃO, 2009, p.
15)
A comunicação pública se trata
então de “um processo comunicativo que se instaura entre o Estado, o governo e
a sociedade com o objetivo de informar para a construção da cidadania” (Brandão,
2009, p.9). Matos (2003 apud Monteiro, 2009, p. 37) segue a mesma linha: “é um
processo de comunicação instaurado na esfera pública que engloba o Estado, o
Governo e a Sociedade, um espaço de debate, negociação e tomada de decisões
relativas à vida pública do País”. Oliveira (2012) avança e afirma existir uma
interface entre comunicação organizacional e comunicação pública à medida que
aquela se aproxima do interesse público, do exercício democrático e da
cidadania.
Em
sua Carta Deontológica da Comunicação Pública Pierre Zémor afirma que:
A comunicação pública
inclui toda a comunicação efetuada por agentes que trabalham em instituições
públicas, empresas ou estabelecimentos com missão de interesse público, ou
ainda por qualquer outra pessoa que cumpra especificações emitidas por uma
instituição pública. (ZÉMOR, 2008, apud KOÇOUSKI, 2012, p. 77).
Para
Barros e Bernardes (2011), porém, há uma incompatibilidade entre comunicação
governamental e comunicação pública. Eles apontam três características que
reforçam o argumento: o foco excessivo na transmissão de informação; o caráter
ideológico e o patrimonialismo persistente na estrutura do Estado brasileiro. O
modelo informacional e o patrimonialismo são hipóteses também aventadas nessa
reflexão como obstáculos à prática de uma comunicação mais democrática. Ambos
os assuntos serão abordados em tópicos posteriores com a inclusão de outros
elementos.
Os
dois autores minimizam as críticas em relação à comunicação feita pelo Poder
Legislativo, mas ainda tratam a ideia de transformar a comunicação estatal em
comunicação pública como “estratégia” que serve apenas para “legitimar a
atividade por um Estado que não quer ser confundido com aquele que existiu em
outras épocas no país, notadamente, na época da ditadura militar”. (BARROS e
BERNARDES, 2011, p.13).
Informação versus diálogo
Se
a aproximação entre comunicação estatal e comunicação política, como podemos
apreender, distorce os princípios (ou o que deveriam ser) da comunicação
estatal aproximando-a de uma atuação voltada ao convencimento do público, por
meio da propaganda, e da preocupação excessiva com a transmissão de informação
através dos meios de comunicação, prioritariamente, a adoção do diálogo como
princípio parece aproximá-la da comunicação pública.
Oliveira
e Paula (2008) em estudo sobre a comunicação nas organizações apontam para a
insuficiência da cultura informacional como estratégia para alcançar o cidadão.
As pesquisadoras sugerem a superação do paradigma clássico/informacional e a
adoção do que chamam de modelo de interação comunicacional dialógica. Nesse
modelo, a organização “integra a sociedade e é um dos seus atores” e, portanto,
precisa “interagir com eles”.
Duarte
(2009) faz uma distinção objetiva entre diálogo e informação. O autor afirma
que a informação “é base primária do conhecimento”, mas não pode (e nem deve)
incorporar o todo da comunicação. “Informação é elemento básico e essencial da
comunicação, mas não o único”.(DUARTE, 2009, p. 62).
DUARTE,
M. (2009) sugere a aplicação do modelo educativo de Paulo Freire no processo de
comunicação pública como forma de possibilitar a autonomia do cidadão:
Comunicação é a coparticipação
dos sujeitos no ato de pensar [...] [ela] implica em uma reciprocidade que não
pode ser rompida [...] comunicação é diálogo na medida em que não é
transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a
significação dos significados. Paulo Freire (1971 apud Duarte, 2009, p.98).
Afinal, “você sabe com quem está falando”?
Essa
pergunta talvez seja a representação mais característica das relações que se
estabelece no Brasil, inclusive, no âmbito do Estado. Sérgio Buarque de Holanda
(1936; 1947; 1955 [1995] ) afirma que esse tipo de comportamento que
supervaloriza as relações pessoais em detrimento das leis e da organização
social é típica da formação do Estado brasileiro, marcada pelo patrimonialismo.
Para
Holanda (1995) a impessoalidade nunca foi um traço do comportamento dos
brasileiros e os limites entre a família e o Estado ou entre o que é público e
particular nunca ficaram muito claros.
O
patrimonialismo na visão de Barros e Bernardes (2011) é uma condição impeditiva
para aproximação da comunicação estatal da comunicação pública e os dois ainda
reforçam com mais ênfase essa visão agregando à atuação estatal uma prática com
características personalistas e autoritárias. Quer dizer, a comunicação finge
ser pública, se disfarça de comunicação democrática e faz acreditar que defende
interesses de fato públicos. [...] decisões são tomadas “em nome do povo”,
“pelo povo” [...] mas “trata-se de projetos que passam a compor a burocracia da
administração pública [...] de cunho assistencialista, paternalista e, muitas
vezes, populistas e autoritários.” (BARROS e BERNARDES, 2011, p. 13-14). O
cidadão torna-se “público-alvo” e não sujeito do processo comunicativo. Nessa
condição, a comunicação estatal se coloca no papel de “emissor” e o cidadão de
“receptor” da mensagem, repetindo o modelo de Lasswell, e se afastando da
possibilidade de uma comunicação mais interativa[3].
Duarte
(2009) faz um excelente contraponto ao definir o que pode ser considerado
comunicação pública:
Comunicação pública coloca
a centralidade do processo de comunicação no cidadão, não apenas por meio da
garantia do direito à informação e à expressão, mas também do diálogo, do
respeito a suas características e necessidades, do estímulo à participação ativa,
racional e corresponsável. (DUARTE, 2009, p. 61).
Mas
quem é esse cidadão? Com quem estamos falando, afinal?
Para
Monteiro (2009, p.41) “na comunicação pública o receptor é a um só tempo:
cliente, consumidor, contribuinte, eleitor, em suma: cidadão”. Para Matos (2009, p. 52), “a comunicação pública exige a
participação da sociedade e de seus segmentos. Não apenas como receptores da
comunicação do governo e de seus poderes mas também como produtores ativos do
processo”.
No
entanto, o cidadão vive em uma sociedade complexa e desigual cuja participação
nos espaços de decisão e deliberação está associada a sua condição social,
econômica e cognitiva, cuja “existência física não é o bastante para garantir a
existência midiática”. (DUARTE M., 2009, p. 105).
Para
Oliveira e Paula (2008, pág 10), as
infindáveis possibilidades de interação e comunicação aumentaram as exigências
dos cidadãos em relação às instituições e organizações e também os
questionamentos sobre a representatividade no sistema democrático, apontamento
que corrobora com a hipótese lançada sobre as relações do cidadão com a
democracia na atualidade.
Para
Zémor (1995, p.3 ) a relação entre cidadão e Estado não é simples. Diz ele:
“[...] Na
verdade, é a característica ativa do receptor que estabelece a comunicação. A
passividade pressupõe um distanciamento ou uma fascinação frente à autoridade
do emissor público”.
Para
que a ideia do cidadão-receptor seja superada, a comunicação estatal precisa
assumir um papel efetivo no processo de democratização da informação, de
educação e de aumento do capital comunicacional dos indivíduos, a partir do
reconhecimento das desigualdades que impedem o acesso igualitário aos meios e
às formas de informação e comunicação. “[...] seu objetivo [da comunicação
pública] além de informar, é qualificar o cidadão para exercer seu poder de
voz, de voto e de veto nas questões que dizem respeito à coletividade.” (MONTEIRO,
2009, p.40).
“O
problema é que as pessoas que mais precisam de informação em geral são as que
têm menos acesso aos mecanismos de transmissão e orientação ou possuem mais
dificuldade de compreensão de seu significado” (DUARTE, 2009, p. 67).
Matos
(2009, p. 53) aponta: “Um cidadão que não acredita ter direito a se expressar,
que não valoriza o que tem a dizer e que se sente incapaz de comunicar isso
adequadamente aos outros dificilmente terá condições de integrar a rede social
de comunicação pública”.
As
diferenças na compreensão dos indivíduos sobre a realidade e até mesmo sobre
seu papel no processo comunicativo não deve supor que eles sejam incapazes de
entender ou interpretar a realidade. William Gamson (2011) conta sobre suas
observações ao reunir um grupo de cinco adultos negros americanos na cidade de
Boston para uma discussão sobre temas políticos. O autor afirma: “as pessoas
não são tão passivas; as pessoas não são tão estúpidas e as pessoas negociam
com as mensagens da mídia de maneira complexa que varia de uma questão para
outra”.
Gamson
(2011) faz críticas a maneira como as ciências sociais abordam a questão do público
assim como as instituições públicas que sempre conferem mais atenção “à
incapacidade linguística e cognitiva dos trabalhadores.”.
O fato é que os indivíduos na esfera
pública assumem papeis diversos e também negociam e interpelam as instituições.
É o que aponta o professor Marcos André Costa corroborando com a análise de
Gamson ao definir o que chama de públicos de interesse das instituições em vez
de público-alvo[4]. Ele
foi um dos que colaborou na definição do conceito em momento no qual se
discutia a política de comunicação da Petrobrás[5].
Afinal, de que democracia estamos falando?
A
comunicação estatal se desenvolve e atua em relação direta com o mundo da
política. E o mundo da política se estabelece a partir de conflitos e
interesses que muitas vezes afetam o trabalho das assessorias de comunicação
nos órgãos públicos.
Episódios recentes demonstram como a
influência de gestores de ocasião podem ser nefastas à atuação governamental.
Após a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018 deu-se início a um
ataque sem precedentes à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Além de
episódios de censura, o governo ameaça privatizar a empresa.
Em Carta de Conjuntura da
Comunicação Pública, a Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABC
Pública) resume a situação da comunicação governamental na atualidade: “O
cenário da comunicação pública no primeiro semestre de 2021 permanece com
ameaças e padrão de intolerância ao trabalho jornalístico, censura na Empresa Brasileira
de Comunicação (EBC) e dificuldades crescentes no acesso à informação”.
No relatório do Direito à Comunicação no
Brasil (2019), o Coletivo Intervozes escancara a intervenção autoritária do
atual governo na EBC. Sob o título: Comunicação
Pública perto do fim, a organização que tem como bandeira a democratização
da comunicação no Brasil, afirma que a censura foi institucionalizada e a
empresa tratada de forma patrimonialista pelo governo. Tanto que as palavras
“golpe” e “ditadura” foram proibidas “a partir das repercussões de Bolsonaro de
que os quarteis deveriam comemorar a data”.
Do ponto de vista do cidadão, a
ameaça de controle à comunicação pública governamental coloca em risco à
transparência das informações do Estado.
É próprio da República a
transparência. E essa é a razão para que um Estado democrático tenha de manter
em suas rotinas a publicização de tudo o que é feito com o dinheiro público; de
tudo o que é de interesse público e de tudo o que possa afetar o bem público e
o patrimônio público”. (SILVA, 2009, p. 180).
Maia (2008, p. 167) discute a
questão da publicidade em dois sentidos: o fraco, quando apenas faz uma
oposição ao segredo; e ao forte, quando “diz respeito às normas que regulam o
diálogo e a negociação dos entendimentos em público (juízo público)”, mas
salienta que a “visibilidade midiática” não significa aumento do potencial de
deliberação. Isso nos aponta mais uma vez para a limitação do modelo de
comunicação estatal que opta prioritariamente pela publicização de seus atos
através da mídia, ignorando outras possibilidades de comunicação com o público,
inclusive, aquelas que conduzem a maior interação entre o poder constituído e o
cidadão. Tanto é que autora trabalha com a concepção de [6]“públicos
fortes” e “públicos fracos”.
Já Miguel (2014) trata a questão da
representação no espaço democrático como um território em disputa. Para o autor
o que está em jogo são os interesses, não as perspectivas. Gerstlé (2005) arremata: “Las desigualdades en el acesso al
conocimiento, y le linguaje es uma de
las condiciones, se prolongan em desigualdades para la adquisición de
competência política, es decir de la oportunidad de ejercer el poder”.
Haswani
cita Charaudeau (2012, p. 63) para mostrar como o discurso do Estado exerce
poder sobre a sociedade. “Toda instância de poder, quer queira, quer não,
exerce um poder de fato sobre o outro”. Mouffe aponta a necessidade de se rever
a ideia de consenso (sem conflito) na democracia liberal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
processo de democratização e o avanço das redes sociais, entre outros fatores,
transformou o espaço público de debate e deliberação. As relações na esfera
pública tornaram-se mais complexas e disputadas. Nesse contexto, a comunicação estatal
não é a única e nem a principal voz. E o cidadão, ainda que de forma limitada, também
conquistou a possibilidade de expressar-se.
A
ampliação dos espaços de “fala”, porém, não significou maior capacidade de
alguns indivíduos de influir no debate de temas de interesse públicos. As
desigualdades continuam latentes e presentes na sociedade o que exige o
aprofundamento das reflexões sobre representatividade – peça-chave do
questionamento de parte dos cidadãos sobre a validade da democracia.
A comunicação estatal não pode
ignorar essa realidade.
Mais
do que isso: ao observar a análise dos autores sobre o processo histórico que
forjou a comunicação estatal no Brasil é possível afirmar que a consolidação de
uma comunicação estatal mais próxima dos valores da comunicação pública é
condição necessária para a consolidação da democracia.
As
demais hipóteses formuladas como desafios à comunicação estatal ganharam
respaldo nos estudos dos pesquisadores, ainda que careçam de aprofundamento.
Neste
contexto, ouso estabelecer aqui algumas funções que considero, a partir das
concepções propostas no artigo, como fundamentais para uma comunicação estatal
que se proponha democrática e dialógica:
FUNÇÃO |
IDEIA CENTRAL |
OUVIR |
Aprenda
a escutar cuidadosamente. “As pessoas não são como lembra Giddens (1996 apud
Gamson, 2011) “tolos culturais ou estruturais.” |
INFORMAR |
“[...]
Necessidade de o Estado produzir permanentemente informações de natureza
jornalística para a população, assegurando para a mesma as informações sobre
os “fatos” do governo que por ventura não se tenha garantia de que a mídia
tradicional se interessaria por eles”. ( SILVA, 2009, p. 181) |
PUBLICIZAR |
“[...]
quanto mais democrática uma república, mais visível seria a coisa pública e
menos opaco o poder dos governos e do Estado, podendo-se desse escalonamento
lógico deduzir-se que há uma relação proporcional entre Democracia e
Publicidade [...]”. (SILVA, 2009, p. 186) |
DIALOGAR |
“[...]
Comunicação em seu significado mais pleno [...] se realiza plenamente na
perspectiva interativa e dialógica, quando se oferece aos interlocutores a
possibilidade de participar ativamente dos processos que os afetam.” (DUARTE,
2009, p. 63) |
EMPODERAR |
“[...]
comunicação pública é política de inclusão informacional. [...] é política de
democratização do saber. (MATOS, 2009, p.56). |
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[1]Segundo
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Atlas: 2009
[2] A Constituição Federal foi promulgada
em 5 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
[3]
Cientista político que desenvolveu um modelo de comunicação que estabelece,
entre outros aspectos, a ideia do emissor e do receptor com papeis bem
definidos no processo comunicativo, sem reciprocidade.
[4]
O professor Marcos André Costa apresentou
a definição de públicos de interesse durante a aula sobre Mensuração da Comunicação na área pública ministrada em 17 de julho
de 2021 no Programa Avançado em Comunicação Pública coordenado pela Associação
Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje) e a Associação Brasileira de
Comunicação Pública (ABC Pública). Texto original: Petrobras study of publics: a
step towards achieving the company’s strategic vision for 2020.
Disponível em: https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/13563281111156862/full/html.
[5] PETROBRÁS. Definição de públicos de interesse. “Públicos de interesse são grupos de
indivíduos e/ou organizações com questões e/ou necessidades comuns de caráter
social, político, econômico, ambiental ou cultural que estabelecem ou podem
estabelecer relações com a Petrobrás (ou qualquer outra organização) e são
capazes de influenciar - ou ser influenciados por – atividades, negócios e/ ou
a reputação da organização. A partir desse mapeamento, promovemos práticas
contínuas de comunicação e relacionamento para cada um dos públicos”. Disponível
em https://petrobras.com.br/pt/quem-somos/perfil/publicos-de-interesse/.
[6]
Para autora, público forte diz respeito àqueles grupos representantes do centro
do sistema político e às elites; e público fraco é o sujeito da opinião
pública. (MAIA, 2008, p. 179)
*Artigo Científico produzido como trabalho final da disciplina Comunicação Pública e Política: Fundamentos para a Análise das Crises na Democracia Contemporânea integrada ao programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP), cursada como aluna especial no périodo de março a a julho de 2021.Avaliação: A, excelente.
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